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Mercosul e luta contra a desflorestação na ementa da visita de Macron ao Brasil

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O Presidente francês Emmanuel Macron efectua desde ontem uma visita de três dias ao Brasil, a sua primeira visita oficial à América do Sul, exceptuando participações em cimeiras internacionais nessa parte do globo. Esta visita acontece depois de um relativo afastamento dos dois países devido nomeadamente aos antagonismos existentes entre Paris e Brasília durante a era Bolsonaro.

O Presidente brasileiro Lula da Silva juntamente com o seu homólogo francês Emmanuel Macron na ilha de Combu, nas imediações de Belém, no Brasil, no dia 26 de Março de 2024.
O Presidente brasileiro Lula da Silva juntamente com o seu homólogo francês Emmanuel Macron na ilha de Combu, nas imediações de Belém, no Brasil, no dia 26 de Março de 2024. REUTERS - Ueslei Marcelino
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Com esta deslocação, trata-se agora de dar destaque aos interesses comuns, nomeadamente a cooperação em matéria de defesa, com a inauguração esta quarta-feira no Rio de Janeiro de um submarino de uma série de quatro concebidos pela França, tendo em vista no futuro a transferência de conhecimentos franceses sobre engenhos de propulsão nuclear.

Outro assunto que também interessa aos dois países é a protecção da floresta amazónica que se estende até ao território da Guiana Francesa. Neste sentido, os dois presidentes anunciaram ontem o lançamento de uma iniciativa visando angariar um bilião de euros para financiar projectos de desenvolvimento económico sustentáveis e de protecção da Amazónia.

Para além dos assuntos que juntam os dois países, existirão também os pontos que dividem, nomeadamente as grandes questões internacionais como a Ucrânia, em que o Brasil assume a sua neutralidade enquanto a França apoia Kiev. Outro assunto em cima da mesa é o bloqueio da França à assinatura do acordo entre a União Europeia e o Mercosul, aquele que é o dossier mais importante do ponto de vista de Emerson Cervi, professor do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná.

RFI: O bloqueio francês ao acordo entre a União Europeia e o Mercosul deveria ser um dos assuntos da agenda da visita de Macron ao Brasil, embora não seja mencionado oficialmente.

Emerson Cervi: Desde Janeiro, quando agricultores europeus, mas principalmente na França, fizeram aquelas manifestações em função dos baixos preços dos seus produtos, o governo francês intensificou os bloqueios para a assinatura do acordo. O problema para o Macron, e aí me parece que esteja a justificativa oficiosa para essa visita, é que existem países da União Europeia que querem um acordo, em especial Alemanha, porque com esse acordo, produtos manufacturados terão mais facilidade para serem exportados da Europa para o Mercosul e, em contrapartida, o Mercosul forneceria à Europa produtos primários. Essa é a grande questão. Então eu diria que essa visita do Macron ao Brasil agora tem duas motivações. E não é verdade que a primeira, a questão ambiental, fosse apenas uma desculpa ou uma justificativa artificial para a visita dele. Porque durante o governo Bolsonaro, quando nós tivemos uma série de problemas de desmatamento na Amazónia e de ataques às populações originárias daquela região, de exploração ilegal de minérios, o crescimento de todos esses crimes, o Macron foi uma liderança internacional que se levantou contra, inclusive com embates directos contra o ex-presidente Bolsonaro. Então é justificável que ele venha, porque ele, naquele momento se apresentou como alguém contrário ao que se fazia no Brasil. Mas não dá para reduzir a agenda dele apenas a essa motivação. Tem a questão comercial clara.

RFI: Relativamente ao aspecto da protecção do meio ambiente, que é o primeiro ponto que foi destacado desta visita, que começou por Belém, ambos os presidentes anunciaram o lançamento de um fundo visando levantar 1 bilião de Euros de investimentos "verdes" para a Floresta Amazónica, tanto do lado brasileiro como do lado da Guiana Francesa. A França esforça-se por se apresentar como sendo uma nação também amazónica, apesar de não fazer parte da organização que gere a floresta. Até que ponto é que, de facto, a França pode pesar relativamente à questão da protecção do meio ambiente na Amazónia, apesar da intervenção política que teve durante a era Bolsonaro?

Emerson Cervi: Os Anúncios de fundos e de recursos para a preservação são muito comuns. Uma coisa é o anúncio, outra coisa é a chegada de recursos. No caso do Macron, faz mais sentido porque uma parte dos recursos é para a Amazónia da Guiana Francesa. Então é muito provável que ele se concretize. Mas nós encontramos muitos anúncios de investimentos para conter o desmatamento na região amazónica que nunca saem do papel, nunca chegam na região amazónica. E o que já se provou foi que, para preservar a mata, mais importante do que grandes projectos com recursos bilionários, é manter a população originária no seu local para evitar explorações económicas que causem danos ao meio ambiente. E as populações locais conseguem sobreviver e conviver com a mata em pé sem precisar derrubá-la. Então, o projecto, as políticas de manutenção dessa população, combatendo o que é acto criminoso, desmatamento ilegal e outros tipos de crimes, são acções de Estado. Agora, por outro lado, é preciso considerar também que uma parte dos problemas da região amazónica é transnacional, que se dá em fronteiras entre países e tem ligação com o tráfico internacional de drogas. Então, nesse sentido, é importante ter uma participação de várias lideranças, lideranças internacionais, porque senão, tem destino o produto ilegal da droga que basicamente sai dali para a Europa ou os Estados Unidos. Então, nesse sentido, é que ele se justifica, mas não necessariamente em função do volume de recursos.

RFI: Mencionou que nesta visita há também o aspecto da cooperação económica. Em que medida é que, de facto, a França está presente economicamente e esta cooperação, estas trocas comerciais, entre a França e o Brasil são importantes?

Emerson Cervi: A grande questão é que o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia se dá entre essas organizações supranacionais. A questão central é que, para dificultar a assinatura do acordo, há uma demanda capitaneada pela França, de que haveria algumas restrições às exportações do Mercosul, caso não fossem cumpridas algumas medidas de preservação ambiental. Pois bem, até aí está tudo correcto. Não tem quem se opõe a isso. O que o Mercosul, via o Brasil propôs, em contrapartida, foi que essas medidas de contenção de exportações do Mercosul para a União Europeia, quando elas fossem restringidas por problemas no cumprimento de metas ambientais, que houvesse um organismo de fora dos dois, o Mercosul e da Comunidade Europeia, para avaliar o que não estava previsto na proposta original. Em segundo lugar, que as exportações da União Europeia para o Mercosul também sofressem alguma restrição, que não fosse apenas uma restrição unilateral. Então, é esse o ponto em que os negociadores estão agora. Como fazer para avançar no acordo sem causar nenhum grande prejuízo para um dos lados, sem que um dos lados fique muito mais fragilizado do que o outro? Na proposta original, o Mercosul estaria muito mais fragilizado do que a União Europeia e é em função disso que a assinatura não ocorreu até agora.

RFI: Julga que esta visita de Macron e os contactos directos com o presidente Lula podem eventualmente desbloquear ou, pelo menos, facilitar este dossier?

Emerson Cervi: Eu creio que sim. Eu creio que houve já esse avanço numa contraproposta. E se eles estão dispostos a conversar, inclusive o Macron vindo até aqui, é porque há alguma possibilidade efectiva de avanço. Mas, como eu disse, essa é a agenda oficiosa. Não creio que tenhamos nenhuma definição pública, um anúncio público de definição sobre isso.

RFI: Relativamente a outro aspecto desta visita, o aspecto político, há muitos motivos pelos quais o Brasil e a França podem não se entender, nomeadamente no que toca à Ucrânia. Portanto, os grandes assuntos a nível internacional também estão em cima da mesa.

Emerson Cervi: Sim, e aí nesse ponto, eu diria que é mais uma questão de governo do que de Estado. Eu acho que com relação aos Estados, França, Brasil, Mercosul, há uma certa convergência. Eventualmente você pode ter líderes com uma posição sobre um tema sensível como esse num momento e mudar inclusive a posição. Até porque o exemplo da guerra da Ucrânia é uma guerra que já passa de anos. Como se trata de um tema muito distinto em relação aos dois países, a guerra na Ucrânia está muito mais próxima da França do que do Brasil. A França tem interesses muito mais directos, regionais na questão da disputa entre a Rússia e a Ucrânia do que o Brasil, embora o Brasil também importe muitos produtos agrícolas da Ucrânia. Me parece que essa maior proximidade da França relativamente a esse conflito é que explica a diferença entre as posições dos países. Mas não é uma diferença antagónica. Você tem uma posição de neutralidade de um país e uma posição activa de outro país em relação a um dos agentes dessa disputa. Eu não vejo algo tão antagónico assim.

RFI: Relativamente ainda esta visita de Macron ao Brasil, ela acontece também numa altura em que o bloco dos BRICS, de que o Brasil faz parte, tem vindo a assumir posicionamentos cada vez mais preponderantes a nível mundial, com uma série de países a quererem integrar esse bloco. Um bloco que não tem propriamente as mesmas visões que o bloco ocidental sobre boa parte dos dossiers a nível internacional. No fundo, o Brasil acaba por ser uma porta de contacto com a França mais fácil neste momento?

Emerson Cervi: É. Desde o governo anterior de Lula, uma política internacional é colocar o Brasil numa relação mais próxima dos países do hemisfério sul. Foi daí que surgiram os BRICS com a África do Sul, relacionando e aproximando esses países a partir dessa região. Sem dúvida nenhuma, isso também dá uma força para a relação entre o Brasil e a França, porque a França pode encontrar no Brasil uma porta de entrada para as relações comerciais, inclusive com esses países do Sul-Sul. Embora a França historicamente tenha relações comerciais, inclusive históricas, com países da África. Então, seria um complemento para a França. Eu não diria que seria tão central assim. Mas, sem dúvida nenhuma, essa relação Sul-Sul do Brasil abre uma porta para a relação com os países do hemisfério Norte.

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