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Revolução dos Cravos

José Vieira volta aos “bidonvilles” portugueses contra amnésia colectiva

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O cineasta José Vieira lança o seu primeiro livro, “Souvenirs d’un Futur Radieux”, no qual fala dos bairros de lata portugueses dos anos 60 e mostra que “a mesma história” se repete hoje com migrantes de outras nacionalidades. José Vieira quer acabar com o silêncio em torno da história dos portugueses em França, sublinhando que essa emigração foi um acto de resistência política e uma fuga em massa à opressão e à ditadura.

José Vieira, Autor de "Souvenirs d'un Futur Radieux". Paris, 19 de Março de 2022.
José Vieira, Autor de "Souvenirs d'un Futur Radieux". Paris, 19 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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A emigração portuguesa em massa para França, nos anos 60 e 70, foi “uma sublevação clandestina” contra a ditadura porque “partir é resistir”, escreve José Vieira no seu primeiro livro, “Souvenirs d’un Futur Radieux[“Memórias de um Futuro Radioso”], publicado nas vésperas dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Aos 66 anos, o autor de vários documentários sobre a emigração regressa aos tempos da lama e das esperanças no “bidonville” em que viveu e leva-nos até aos acampamentos dos migrantes de hoje. José Vieira aborda os sonhos, as humilhações, os medos e as injustiças daqueles que procuram “uma vida melhor” e parte da sua história para tentar abolir fronteiras e acabar com o silêncio em torno da História dos portugueses em França.

O livro imprime um cunho político a uma emigração portuguesa tantas vezes etiquetada como meramente económica. José Vieira aponta esse êxodo como um acto de resistência política contra a ditadura e sublinha que os portugueses fugiam de um país “onde nada parecia possível”. Nos anos 60, os portugueses fugiam de um regime político que gerava opressão e miséria, hoje são outros migrantes que fogem de outras ditaduras e de outras misérias. A grande maioria vai parar a “bairros de lata”. Também hoje como ontem. “Toda a emigração é política”, resume José Vieira em conversa com a RFI, insistindo que “a miséria é política”.

José Vieira é o cineasta que mais tem quebrado silêncios em torno dos bairros de lata portugueses em França. Fê-lo em busca das suas próprias memórias, mas também porque os “bidonvilles” continuam a ser uma realidade com migrantes de outras geografias. Ele próprio foi para França em 1965, com sete anos, e viveu cinco anos no bairro de lata de Massy, nos arredores de Paris. A sua história levou-o a realizar vários documentários sobre a emigração portuguesa para França e a estabelecer paralelos com o presente. “A Fotografia Rasgada”, “Os Emigrantes”, “O País Aonde Nunca se Regressa”, “Aquele Estranho Mês de Maio”, “Crónica dos Anos de Lama”, “A Ilha dos Ausentes”, "Souvenirs d'un Futur Radieux", “Le Bateau en Carton” e “Nous Sommes Venus” são alguns dos seus filmes que retratam histórias de exílios, silêncios e ausências.

Toda a sua obra cinematográfica gira em torno da emigração, com imagens, sons e relatos que saltam de uns filmes para os outros como se tudo fosse uma vasta odisseia filmada. E foram alguns dos textos dos seus documentários que fizeram nascer o livro “Souvenirs d’un Futur Radieux” que, por sua vez, é o título de um dos seus filmes. Os títulos dos capítulos também retomam títulos de filmes, como num ciclo em que tudo recomeça. No fundo, como ele admite, é “sempre a mesma história”, mas agora “mais brutal” contra os migrantes.

O livro “Souvenirs d’un Futur Radieux”  inaugura a colecção “Brûle-Frontières” da editora francesa Chandeigne.

 

 

"É sempre a mesma história e a história está a ser cada vez mais brutal"

RFI: O livro é publicado nos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Diz que “há alturas em que partir é resistir” e que “o nosso êxodo foi uma sublevação clandestina contra um poder brutal”. Como é que a ditadura foi responsável por aquilo que chama de “hemorragia humana”, ou seja, de um milhão e meio de pessoas que fugiram de Portugal?

José Vieira, Autor de “Souvenirs d’un Futur Radieux”: Primeiro, o que fez partir muita gente foi a guerra colonial na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Há muita malta nova, mais do que as pessoas muitas vezes pensam, que foi embora por causa da guerra colonial. E depois há muitas pessoas que também foram embora por causa da guerra colonial porque naquela época a guerra come 40% do orçamento do Estado português. Portanto, eu acho que a guerra colonial aqui é muito importante.

Depois, há o facto que - eu vi na minha família - a partir dos anos 60, no campo, as pessoas não se safam, não conseguem ganhar a vida com o trabalho no campo porque a ditadura claramente faz a escolha de que os preços da agricultura não aumentem e todos os outros preços industriais vão aumentar e, portanto, as pessoas vão ficar numa verdadeira miséria.

E depois há outra coisa que é importante: é que havia uma opressão enorme e há muita malta nova que se vai embora para simplesmente procurar um futuro porque não veem  futuro nenhum. Houve pessoas que me disseram - pessoas que vêm do povo, que mal tinham a quarta classe - que sabiam perfeitamente que em Portugal não tinham nenhuma oportunidade de fazer qualquer coisa na vida deles, que não tinham futuro. E as pessoas vão à procura de um futuro.

As mulheres também vão à procura de uma emancipação porque é uma sociedade que é dura com as mulheres, sobretudo nas aldeias e, portanto, há muitas mulheres que vão partir sós e o exemplo que a gente conhece melhor é o da Linda de Suza. Muitas mulheres foram-se embora sozinhas de Portugal.

De qualquer maneira, a situação de guerra, de miséria e de opressão que Portugal vivia nos anos 60 era a ditadura, claramente era a ditadura. Quer dizer, o atraso que a gente tinha a todos os níveis, as pessoas analfabetas, o país na Europa onde morriam mais crianças... Portugal parecia um país do terceiro mundo naquela época. Eu acho que a ditadura é completamente responsável. Há aqui uma responsabilidade enorme do regime de Salazar e da ditadura.

Mas ainda hoje, quando se fala na emigração portuguesa para França, nos anos da ditadura, fala-se muito em emigração económica. No livro, o José Vieira defende que esta foi essencialmente e intrinsecamente uma emigração política.

O problema é que toda a emigração é política. Quer dizer, porque é que as pessoas fogem? Porque é que as pessoas se vão embora? Porque claramente - em Portugal  e hoje o que se está a passar em África, no Afeganistão, na Eritreia, ou não sei onde - são razões políticas que fazem partir as pessoas. A miséria é uma questão política. O meu pai não é responsável da sua miséria! O meu pai fez tudo para sair, para não ser pobre, para se safar na vida, para se governar. É uma questão política! Quer dizer, há uma escolha política de sacrificar essas pessoas, o campo. Para mim, toda a emigração é política.

Também mostra que a ditadura continuou a oprimir os portugueses em França. Até tem uma frase, no livro, em que diz que foi na escola republicana francesa que “aprendeu a arte de ser um pequeno fascista”…

Na época, era à quinta-feira que tínhamos aulas de português. Eu tirei a quarta classe em França, portanto, era a preparação para a quarta classe, como em Portugal, e tínhamos exactamente os mesmos livros. Quando a gente vê os livros em que aprendeu a ler, a escrever, a geografia, a História, era uma História revista pelo fascismo português, que não tinha nada a ver com a realidade e portanto, estávamos a aprender a ser pequenos fascistas na escola da República Francesa! É um escândalo quando a gente pensa nisso hoje. Parece incrível porque claramente o governo francês apoiava o governo português na questão da guerra colonial, na venda de armas, etc.

A gente sabe que havia ligações dos serviços da PIDE com os serviços secretos franceses, mas mesmo assim aqui estávamos numa democracia. O que a gente estava a aprender nos anos 60 eram coisas que os pequenos franceses aprenderam durante a Segunda Guerra Mundial quando estava o marechal Pétain no Governo. Naquela época era o De Gaulle que era o Presidente da República e que tinha lutado contra Pétain. Portanto, é um pouco paradoxal.

Começa com um capítulo chamado “Os Anos de Abril”. O que é que são estes “anos de Abril”?

Os “anos de Abril” são os anos que vão levar ao 25 de Abril. Os anos de Abril, para mim, são os anos em que, na minha família, pouco a pouco, vamos tomar consciência do que é a ditadura portuguesa. Primeiro, porque estávamos completamente debaixo da propaganda e vamos tomar, pouco a pouco, consciência que a guerra não é para defender uma civilização ou não sei o quê. É claramente para defender interesses dos industriais e de um certo número de pessoas. Depois, ensinaram-nos uma religião que é só para oprimir o Homem, com um Deus inquisidor. E o meu Pai representa isso tudo naquele momento para nós que somos jovens revoltados. Portanto, os anos de Abril é uma revolta contra o patriarcado, contra a propaganda, contra o fascismo, contra o colonialismo.

Até que chega o 25 de Abril e cai tudo e o regime desaparece como se fosse um baralho de cartas. São anos que, para mim, foram os anos mais formadores, em que eu conheci jovens que tinham 20 e tal anos. Naquela época, em 1974, eu tinha 16 anos e conheci jovens que tinham fugido da guerra colonial e que me fizeram ter consciência que eu fazia parte de uma classe social, da classe operária.

No livro fala de si, fala consigo, mas também fala do seu pai, da sua mãe, fala à sua filha. É a história de uma família, uma história muito pessoal, de muita luta. Por que é que decidiu escrever este livro?

Porque a impressão que eu tenho é que se alguém tivesse escrito isto, eu não precisava de o escrever. A impressão que me dá é que eu passei por uma história que não foi escrita. Há tentativas aqui e além, mas tenho a impressão, e mesmo com este livro, que ainda não foi escrita. Eu já fiz bastante filmes sobre a emigração portuguesa e os franceses muitas vezes têm a impressão que não temos história. Quer dizer, que os portugueses chegaram aqui, não tiveram dificuldades nenhumas, que viemos de um país que era uma espécie de fascismo de “operette”.

Um fascismo brando, dócil…?

Sim e finalmente tenho a impressão que não há nada sobre o que se passou, sobretudo nos anos 60. Há poucos filmes, há pouca literatura. Há aqui um vazio que eu tento preencher e que acho importante preencher.

Ou seja, mais uma vez, neste livro, como em grande parte da sua obra cinematográfica, mostra uma realidade que aqueles que a viveram quiseram esconder ou esquecer. Mostra a miséria, mostra a exploração dos portugueses, em contraste com as narrativas, por exemplo, de empresários de sucesso em França. Há uma vontade de mostrar os bastidores, de lutar contra uma certa amnésia colectiva?

Primeiro, eu tento simplesmente contar por onde eu passei e por onde passaram as pessoas com quem eu vivi. E depois há uma espécie de “storytelling” à volta da emigração portuguesa a dizer que é uma emigração de sucesso, que é um êxito. Quer dizer, materialmente, claramente é um êxito para a maior parte das pessoas. Mas ao nível humano acho que toda a emigração é uma coisa complicada, é uma dificuldade e deixa traumas nas pessoas. E é isso que tento contar, que a coisa não se passou assim tranquilamente, que houve bastantes problemas.

Fala em traumas. Recorde-nos com que idade é que chegou a França e como foram os primeiros anos no bairro de lata de Massy.

Tinha sete anos e meio e cheguei a um bairro de lata que era um pouco um caos ao princípio, sobretudo com as pessoas todas a chegarem de Portugal, foi um momento, em 1965, em que estava a emigração mesmo a acelerar. E no meio da lama... Esses dois primeiros anos, sobretudo, foram um pouco complicados. Quer dizer, não houve hospitalidade da parte dos franceses.

Às vezes é melhor a gente esquecer as coisas também, não é? Eu compreendo que haja pessoas que tenham vontade de esquecer o que se passou. Foi bastante complicado e fomos mal acolhidos, às vezes mal acolhidos. Muitas vezes ouvi dizer que se não estamos contentes em França, podem fazer melhor e regressar ao vosso país. Quer dizer, a gente ouviu um certo número de coisas e é verdade que para agir é preciso esquecer um pouco. Se a gente está sempre a pensar no que passou e as dificuldades por que passou pode ser um pouco paralisante.

Eu acho que a gente relembrar e partir da nossa memória para fazer a história, confrontar essa história com a história dos outros, tentar fazer a história de uma emigração e confrontar também a nossa história de emigração com outras migrações, eu acho que é importante para a gente avançar porque o que eu vejo na emigração portuguesa é muito silêncio. E esse silêncio não faz avançar nada. Quer dizer, esse silêncio só põe problemas. Por exemplo, o meu pai nunca me falou da infância dele. O meu pai só me dizia que eu não sabia o que era ter fome. Mas eu compreendi que ele passou fome. Mas não me dizia mais que isso.

Eu acho que esse silêncio não ajuda em nada. O problema é que as pessoas se sentem culpadas pelo que passaram. Se as pessoas tivessem reflectido um pouco mais sobre isto ter uma dimensão colectiva, que não é só uma emigração individual ou um destino individual, se as pessoas tivessem compreendido isso e tivessem reflectido sobre isto, também seria mais fácil para toda a gente avançar junta.  Encontrei muitos filhos de emigrantes a quem falta história, palavras, imagens da emigração e isso vai-se transmitindo nas gerações. E não é bom porque depois, não estando a reflectir sobre isso, as pessoas são capazes de fechar a porta. De fechar a porta aos outros emigrantes e votar por pessoas que só propagam o ódio.

O José Vieira fala nos bairros de lata, nas injustiças que viu e que viveu enquanto emigrante. Ainda assim, muitas vezes fala de uma “infância feliz”. Como é que é possível ter uma infância feliz num bairro de lata?

Eu era uma criança que queria brincar. Quando a gente chegava de Portugal, havia coisas aqui que não existiam em Portugal. Vivíamos em barracas durante o inverno, no meio da lama, tínhamos frio durante o Inverno, mas, quando chegava a primavera e o verão, íamos à descoberta de um país que para nós era praticamente tudo desconhecido. Era tudo novo e havia tantas coisas aqui que não havia em Portugal, por exemplo, jogos. Os livros que a gente encontrava no lixo porque naquela época não eram os nossos pais que compravam isso, a gente desenrascava. O facto de ter um pouco de dinheiro que a gente em Portugal não tinha…

No meio disto tudo, éramos crianças e estávamos sempre a brincar no bairro de lata. Eu acho que em todos os bairros de lata do mundo inteiro as crianças continuam a brincar. E foi o que se passou. A gente simplesmente continuou a brincar porque éramos crianças que queríamos jogar aos índios e aos cowboys, que queríamos arranjar um pouco de dinheiro para comprar rebuçados. Era uma vida de criança.

Quando filmei os romenos, por exemplo, no dia da expulsão, eu lembro-me muito bem que chegou a polícia às seis da manhã, deitou as pessoas todas fora. Em cinco minutos, deitaram tudo para fora do bairro de lata e as pessoas instalaram-se lá mesmo ao pé, num parque de estacionamento. A primeira coisa que as crianças fizeram foi começar a brincar. E a polícia ainda estava ali, à volta daquilo tudo. E as crianças começaram logo a brincar porque é uma reacção de sobrevivência, é para viver.

O livro chama-se “Souvenirs d’un Futur Radieux” que é o nome de um documentário em que filma, justamente, os migrantes romenos, assim como o fez no filme “Le Bateau en Carton”. O que é que são estas “memórias de um futuro radioso”?

É uma coisa muito simples. Nos anos 60, eu tinha 7, 8,9,10 anos. Muitos livros diziam que no ano 2000 já não haveria miséria no mundo, que já não haveria injustiça no mundo, que já haveria vilas no espaço, vilas submarinas, que seria o progresso total e que a humanidade seria feliz simplesmente. Se procurar hoje arquivos dessa época, é o que é dito na televisão e nos livros, que o ano 2000 seria um futuro radioso, que não haveria injustiças, que não haveria miséria e que não haveria emigração.

Eu era miúdo, acreditei nisso, claro. E todos os miúdos da minha geração acreditaram nisso. Isso nunca existiu. Passado o ano 2000, estamos cada vez pior. Por isso é que é “souvenirs” porque tenho lembranças de um futuro que seria radioso, mas que não foi. Os anos 60 para mim foram isso. Quer dizer, a gente morava num bairro de lata, em condições um pouco difíceis, mas para nós o futuro era radioso. Quando a gente é criança, o mais importante é o futuro. Quer dizer, estamos sempre a projectarmo-nos. Eu acreditava e estava convencido que o futuro seria radioso. Não foi.

E a prova é que ainda há bairros de lata e o José Vieira continua a filmá-los…

Eu nunca imaginei, mesmo quando tinha 20 e tal anos, que filmaria bairros de lata nos arredores de Paris. Nunca imaginei...

O que mais dói no livro é que o relato da sua vida, da sua família nos bairros de lata, das injustiças permanentes, da xenofobia, dos preconceitos relativamente aos migrantes que atravessam fronteiras em busca de uma vida melhor acabam por esbarrar nas fronteiras humanas. Meio século depois, outros migrantes estão a passar pela mesma história. É sempre a mesma história?

É sempre a mesma história. E é pior que isso. É uma história cada vez mais complicada para as pessoas. É cada vez mais complicado chegar à Europa. É cada vez mais complicado sair do seu país, arranjar papéis nos Estados Unidos, na Europa, etc. É sempre a mesma história e ao mesmo tempo, a história está a ser cada vez mais brutal. O que vive hoje um jovem que sai de África, por exemplo, que leva um ano ou dois anos a atravessar África e a atravessar o Mediterrâneo quando chega à Europa – se chegar porque muitos morrem – é a mesma história. Mas, ao mesmo tempo, é muito mais complicado que aquilo que a gente viveu, que o que viveram os nossos pais. Atravessar os Pirenéus, atravessar a Espanha e também houve mortos. Mas não tem nada a ver, agora é muito mais brutal o que se está a passar, muito mais brutal.

É por isso que faz filmes? Para recordar o que foram os bairros de lata e fazer com que as fronteiras sejam finalmente abolidas?

Estou convencido de uma coisa: se hoje estivéssemos numa situação em que houvesse pouca emigração, em que as coisas se passassem bem, em que as pessoas tivessem a possibilidade de viver no país delas - porque é isso que as pessoas querem,  ninguém quer emigrar - eu estou convencido que não falaria do que se passou. Porque é que eu digo isto? Porque é o facto de eu ver o que se está a passar hoje, as odisseias das pessoas a emigrarem para a Europa, isso é que desperta a minha memória.

Muitas vezes, quando escuto um africano a falar, penso: “Eu não pensei nesse aspecto. Já ouvi portugueses a dizer isso quando eu era pequeno. Hoje, se vivêssemos num mundo um pouco melhor, eu não precisava de estar a contar o que a gente passou. Não precisava, não havia necessidade, simplesmente diria que passámos um momento difícil, mas está tudo bem agora. Mas o problema é que passámos por um momento difícil, mas está tudo cada vez pior.

Hoje, a França e a Europa estão a tratar cada vez pior os estrangeiros que estão a chegar. A gente não foi assim muito bem tratada, mas agora? A maior parte dos portugueses chegavam clandestinos, sem papéis. As pessoas chegavam sem papéis - havia explorações e havia patrões que aproveitavam a situação para explorar os emigrantes - mas as pessoas tinham papéis rapidamente, não é? Agora são precisos 10, 15 anos para arranjar os papéis. E durante esses 10, 15 anos, as pessoas são exploradas e não podem viver normalmente. É terrível. Para mim é terrível. Eu não sei como é que as pessoas aguentam isso.

A dada altura, no livro escreve: “Sabes, minha filha, nunca se emigra impunemente. Todas as fronteiras que foi preciso abolir para chegar aqui deixaram sequelas”. Que sequelas são essas? Ou, voltando à mesma questão: porque é que é preciso que o José Vieira lance a cada filme uma pedra no charco ao lembrar o que são os bairros de lata, as dificuldades, as migrações, as infâncias roubadas, as vidas adultas exploradas...

Digo isto à minha filha porque, muitas vezes, ela não compreende... Ela é francesa, também tem a identidade portuguesa. Eu sinto-me de cultura francesa, mas não digo que sou francês. Não sou porque sou emigrante, a minha filha é francesa, nasceu aqui, etc. Para ela, é difícil compreender isto porque não me sinto como ela em França e, ao mesmo tempo, a França é o país onde eu vivo, onde vou viver e é o país onde habito no presente.

E o que é que são essas fronteiras? Quer dizer, a fronteira geográfica é passarmos de Portugal para a Espanha, de Espanha para a França. Ok. Mas quais são essas fronteiras que a gente tem de passar? Quando chega aqui? A primeira fronteira é a língua. Ora, para uma criança não é complicado, mas para o meu pai foi uma fronteira que ele nunca saltou. É a gente se sentir, à frente da administração, sempre desprezada. foi uma coisa que eu vivi muito com o meu pai porque eu ia traduzir porque ele não falava francês e vivi coisas complicadas.

Humilhantes?

Humilhantes. Humilhação é uma palavra que é importante para mim. Como criança, uma pessoa chegar a França, ter sete anos e chegar à escola e a professora dizer: “Senta-te ali ao fundo da classe e depois verás”, quer dizer, sem me dizer nada, sem dizer nada às crianças à minha volta, tudo isso são fronteiras que a gente tem de passar. E a primeira fronteira que eu tive de passar foi na escola. As crianças são cruéis com as outras crianças. Gozavam connosco, com a maneira como estávamos vestidos, etc.

Há muitas fronteiras. Depois há aquela fronteira que a gente tem de ultrapassar, mas isso dura mais tempo, que é dizer “vou ficar aqui, vou viver aqui, não vou viver por procuração, não vou viver num sonho de voltar para um país que já não existe, que acabou”. Pronto, foi o país da infância, mas é viver no presente. Cada um tem as suas fronteiras. Há tanta fronteira a atravessar para chegar aqui.

Várias vezes refere-se a Portugal como “o país da infância”, mas tem um capítulo e um filme chamado “A Ilha dos Ausentes”. Como é que “o país da infância” se transforma na “Ilha dos Ausentes”?

Com o tempo, simplesmente com o tempo. Passamos os primeiros anos a pensar em regressar. Há pessoas que se vão embora e que nunca mais pensam em regressar a Portugal ou a outro país. Mas a maior parte da emigração parte daquela ideia de regresso. Porquê?  A gente precisa desse mito - porque é um mito - para enfrentar a vida aqui porque a vida ao princípio é complicada. Portanto, a gente passa esses primeiros anos na ideia que vamos regressar. A gente vai lá de férias e, a pouco e pouco, compreende que para os que ficaram, somos os ausentes, simplesmente. E que o país é uma ilha. Para mim é como se houvesse uma enorme ponte entre Paris e o sítio onde eu nasci. Entre os dois não há nada, não há realidade, quer dizer, é mesmo aquela ideia que o regresso é uma utopia, que a utopia é uma ilha, uma ilha no meio do mundo.

Essa ilha é o passado ao qual não se pode voltar porque é passado?

O Fernando Pessoa, num poema que tem um título francês, “Là-bas, je ne sais où”, diz que o lugar onde se regressa é sempre outro. Há escritores que dizem que a partir do momento em que a gente se vai embora, fecha a porta e a relação que a gente tinha com o país acabou. Claro que vai nascer outra relação, mas a realidade em que a gente vivia, desaparece. Desaparece no momento em que a gente parte.

É “o país onde nunca se regressa”?

Exactamente.

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